Normalidade





 Mudei-me para um pequeno apartamento modesto e confortável. Sem luxos, na verdade, mas luxuoso por si. Era como aqueles apartamentos dos anos 1970, com aquecedor e mobília marrom. Era o suficiente para uma pessoa que mal parava em casa. Minha rotina se baseava em acordar às seis e voltar às seis e meia. O apartamento poderia ter um cômodo apenas – quarto – que já me sentiria satisfeita.  Aos finais de semana, encontrava-me dentro da internet ou lendo alguma revista de quadrinhos. Poucas vezes tinha saído para me encontrar com alguns amigos, pois o dia estava ficando cada vez mais frio. Enquanto meu apartamento ficava em absoluto silêncio quando eu estava dentro dele, ouvia gritos e berros de discussões vindas do andar de cima. Parecia um homem e uma mulher concorrendo para quem venceria aquela briga calorosa. Não conseguia ouvir exatamente o que diziam. O piso abafava as vozes e o máximo que conseguia compreender eram as pisadas, fortes e rápidas, de um lado a outro.
 Preferia fingir que não ouvia, embora atrapalhasse demais minha concentração. Tinha curiosidade em saber do que se tratava, já que ficavam, praticamente, duas horas no mesmo clima. Aconteciam sempre de tarde, mais ou menos no horário do almoço. Eu tentava imaginar a cena: o marido, machão, chegava em casa, mandando e praguejando. A mulher perdia a paciência e assim começava tudo. Ou, eles tinham dificuldades financeiras e não estavam conseguindo pagar o aluguel. Ou coisa pior: o marido não ligava mais para a esposa; provavelmente, tinha um caso com uma colega de serviço. Eu poderia escrever um livro sobre os vizinhos que nunca conheci. Imaginei também o físico: o homem alto, meio barrigudo por conta da idade, com ar de cansaço da vida; a mulher, magricela e agitada, com os cabelos presos e sem maquiagem. Quanto tempo estariam casados? Vinte e cinco? Trinta anos? Não poderia ser um casal de velhos, pois havia energia de sobra para os gritos.
 Cheguei a imaginar que, na verdade, o andar de cima fosse uma pequena escola de zumba e a professora ou o professor era uma pessoa exigente, mas isso por causa das batidas de pés sobre a minha cabeça. Tudo isso acontecia somente de sábado. Aos domingos, nenhum ruído. Às vezes, ficava empolgada para chegar a tarde de sábado, só para imaginar, em meio um tédio de dia fechado, o que estaria acontecendo. As brigas começaram se agendar em outros dias. Começou em uma terça feira à noite, depois às quintas e sextas. Eu retornava para casa exausta. Não queria imaginar mais nada. A parte mais difícil era dormir. O pior era acordar com enxaqueca. Pensei em me mudar. Aquele lugar aconchegante com ar de “casa da vovó” estava virando um cortiço escandaloso. Nos outros dias, ao voltar para casa depois do expediente, eu suspirava por pensar “hoje não é aquele dia”. Perdi a conta de quantas vezes tive que sair de casa para comprar uma aspirina. Fui comprar logo aquelas caixas que vem centenas. Se eu precisasse, estaria lá. Ora eu saía de casa para não ouvir a voz do casal de meia idade ora eu deitava na cama com um travesseiro sobre a cabeça- ajudava a abafar mais do que o teto. Me peguei pensando se haveria uma fresta no piso deles. O som parecia cada vez mais alto ou eles haviam mudado de posição?
 Eu não compreendia como duas pessoas não se tocavam que estavam morando em um prédio. Um escândalo em uma casa já é terrível, em um apartamento só surdo não ouve! Logo após, comecei a me sentir preocupada: e se houvesse alguma tragédia? E se há algum vestígio de violência doméstica? Ligar para a polícia ou não?
 Peguei meu celular e fiquei olhando para a tecla de números. Eu mal os conheço, já apareço assim, de paraquedas, denunciando o que nem imagino o que estava acontecendo? Outros vizinhos nunca devem ter chamado a polícia nem batido na porta deles? Por que perderia este tempo fazendo isso? Porque você já está com dor de cabeça o suficiente, caramba, pensei.
 Em um sábado relativamente ensolarado, resolvi dar uma volta e ver os passarinhos- cantando e não berrando. Quando fui descer as escadas de meu prédio velho, uma mulher de mais ou menos trinta e cinco anos vinha subindo as escadas. Era bem apessoada e simpática. Quando olhou para cima e me viu, veio logo me perguntando se eu não era a menina nova do apartamento 302. Sim, era eu. Ela me disse que morava no andar de cima com seu namorado, provavelmente acima do meu apartamento. Sorri- que na verdade, não deve ter sido bem um sorriso, mas mostrei-lhe os dentes. A moça, muito gentil, convidou-me para passar um dia e tomar um café com o casal. Mostrei-lhe os dentes, novamente. Não, obrigada, pensei.

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